Diários da Sabedoria, também conhecida por Sofia noutras linguas. Parte 2

Alma de “Guevarista”?

Na última semana tomei uma decisão que acho que foi das mais importantes que tomei até hoje: inscrevi-me num grupo de voluntariado e, se tudo correr bem, vou em Agosto para África dois meses como missionaria.

No momento de reflectir acerca da minha decisão, tentei procurar o porquê desta vontade de me encontrar com uma realidade tão diferente, mas ao mesmo tempo realidade duma grande parte da população mundial.

Comecei por analisar a minha vida toda, senti necessidade de fazê-lo.

Venho de uma familia de universitários, grande parte deles médicos, o que dá um bom estatuto económico. Assim sendo, desde pequena estive nos melhores colégios, rodeada de pessoas com situações parecidas com a minha, e foi com doze anos que conheci um grupo de pessoas diferentes. Fiz amigos filhos de empregadas de limpeza, obreiros, cozinheiras nas cantinas das escolas, empregados de balcão. Pessoas com ordenados inferiores ao dos meus pais, o que dá uma realidade de vida bem diferente. E foi nesta altura que comecei a revoltar-me contra as elites sociais.

Começou a meter-me confusão ver os meus antigos colegas a gastar dinheiro em jantares caros, esse dinheiro que custava tanto ganhar aos pais dos meus amigos. Ver essa desvalorização, essa pouca noção da realidade.

Comecei a sentir-me mal no colégio, as pessoas irritavam-me, e custava-me relacionar normalmente com elas.

Com catorze anos vim para Portugal, e fui para uma escola pública, onde conheci os meus amigos actuais até hoje. Atingir bons resultados nessa escola era difícil pelo obstáculo que a língua significava, razão pela qual fui transferida para um colégio, novamente. Este colégio era de fala inglesa, pagava novecentos euros por mês e, como era de esperar, encontrei-me novamente com a realidade que tanta raiva me metia (e mete).

Via pessoas a gastar quarenta euros em jantares, e ouvia comentários ridículos que só alimentavam a minha revolta.

Sem dar muita volta ao assunto, passada uma semana pedi transferencia para uma escola publica, onde me sentia bem, onde enfrentei o obstáculo da língua, atingi boas notas, e onde acabei o secundário (diga-se, ainda bem! Foi graças a isto que tenho este nível de português hoje).

Este ano comecei a faculdade na Universidade Católica que é conhecida por ter um nível curricular excelente, mas deparei-me novamente com a realidade que me fez anteriormente afastar-me de certos sítios, e está a ser novamente um problema.

Custa-me relacionar com as pessoas, o que provoca uma dificuldade para vir às aulas.

Uma conversa é uma troca de ideias, logo, devia ser uma coisa produtiva. Mas deparei-me com trocas de ideias fúteis, que nada de novo me trazem, o que me fez perder o interesse em continuar a tentar.

Tenho um sentimento de culpa por estar inserida nesta elite, e sinto que estou a falhar aos meus princípios, aos meus pilares básicos, às minhas ideologias de vida. Estou inserida na sociedade que provoca a ostentação, na parte social que faz sentir inferiores os menos poderosos economicamente. Sou mais uma neste meio que repúdio.

Reconheço que estou a ir ao limite, tenho encontrado pessoas que partilham ideologias semelhantes com as minhas, pessoas lutadoras e sonhadoras, pessoas que acreditam que podemos mudar alguma coisa, que estão aqui por um objectivo. Mas a outra parte me revolta, e me entristece. Sim, entristece-me ver que pessoas da minha idade não vêem a realidade mundial, não vêem o valor do dinheiro ou de quanto custa ganha-lo, não têm fome de conhecimento, nem interesse por cultura, por assuntos para além das festas do fim de semana e das sapatilhas que compraram.

Depois desta reflexão, cheguei à conclusão de que sou uma revoltada contra o mundo, contra a injustiça, e acho que foi por isto que decidi ir para o meio da pobreza, da doença, onde pessoas morrem por uma gripe, ou por falta de comida… Quero conviver com isto, quero comer com as maõs, andar descalça na terra, valorizar a agua potável, confrontar-me com a realidade, ver o sorriso das pessoas só por um bocado de amor em troca. Porque a única esperança destas pessoas é o amor, e eu tenho muito para dar.

Vai ser uma experiência única, e estou ansiosa pela chegada de Agosto, mas até lá acho que tenho de acalmar um pouco este sentimento, e ganhar noção de que, por muito que isto me incomode, só sou mais uma no meio da multidão, e não vou conseguir mudar o mundo.

Nada custa tentar.

Sofia Yamel Corball


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